Um mundo de possibilidades que ainda não sabemos usar
Se você é servidor público, provavelmente já ouviu (ou conhece alguém que ouviu) de algum gestor: “Trabalho remoto não funciona aqui”… Sim?
Então siga essa reflexão sobre a transição do trabalho presencial para o trabalho remoto 😉
Na década de 90, começaram a surgir os primeiros sites na web, inclusive os de Governo, e nós ainda não tínhamos a menor ideia do que essas portas de entrada para a internet (portais) iriam se tornar. Hoje, a nossa conexão onipresente nos dá acesso a um conjunto de bens e serviços que, em algum momento ao longo desses trinta anos, alguém deve ter avaliado: “Isso nunca poderá ser feito pela internet”.
Os primeiros sites na internet eram de dois estilos extremos. Um era o super básico, tipo um papel timbrado ou jornal impresso colocado na tela, não havia quase nenhuma possibilidade de interação. O outro extremo, era o site altamente estilizado, cheios de texturas, botões 3D, curvaturas, sombras agressivas, gráficos com mapas de imagens, cliparts, etc. Esse estilo foi inspirado nas interfaces interativas de CDs / DVDs que vieram um pouco antes.
Ambos os estilos – o cabeçalho com texto e o gráfico estilizado – eram apenas transposições não adaptadas, de um meio para o outro. Ninguém sabia o que fazer com a internet naquele momento, então, usamos nossas referências anteriores, do mundo impresso – copiando-as ou desvirtuando-as. Ainda não sabíamos aproveitar o melhor da plataforma, pois estávamos ancorados em “modos de uso” anteriores.
Digitalização e Teletrabalho
Fizemos algo parecido durante toda a primeira década do século XXI. As instituições investiram pesado em transportar toda a burocracia dos processos físicos (em papel) para dentro do computador. Perdemos tempo, pois demoramos a entender a mudança de plataforma. Hoje em dia, já temos uma “transformação digital” em andamento no setor público.
A história não se repete, mas às vezes ela rima. Atualmente, da mesma forma, estamos transpondo todas as nossas práticas do escritório para dentro do Zoom, Google Meet etc.
A plataforma de trabalho mudou, o modo de uso ainda não foi entendido e explorado. A pandemia provou para todos nós que o teletrabalho pode funcionar bem, mas ainda temos muito para aprender. (obs: espero que um dia consigamos criar um nome mais significativo do que teletrabalho).
Estamos migrando uma forma de trabalhar, e isso é ainda mais profundo do que migrar páginas impressas ou processos organizacionais. Ainda não temos a sensibilidade completa do trabalho remoto. Estamos confusos no confinamento, sem entender muito bem o que é causa e o que é consequência.
Reuniões, Eventos e Lives
Hoje, o trabalho remoto é de dois estilos, um tenta ser exatamente igual ao presencial, e o outro é um exagero das possibilidades de transmissão e conexão.
“Nós tínhamos quatro reuniões por dia pessoalmente? Ok, vamos ter as mesmas quatro reuniões, com esses mesmos participantes, agora no Zoom.”
“Nós fazíamos um grande evento anual? Agora online é mais “fácil”, vamos fazer um por semana.”
“Nós nunca fizemos eventos, nosso negócio nem é esse, mas todo mundo está fazendo. Vamos fazer o nosso evento online também.”
Com o tempo vamos perceber, que isso não funciona. Lembram dos exemplos extremos dos primeiros sites? Lembram da burocracia dentro do computador? Estamos entendendo e percebendo o ambiente, mas a nossa capacidade de realização só nos permite fazer as coisas familiares do escritório ou da plataforma remota, online, live…
Recentemente (eu fiz questão de contar), uma mesma pessoa apareceu em 12 lives diferentes, apresentando exatamente a mesma coisa, usando os mesmos slides (quando foi possível compartilhar a tela) todas as vezes. Nem três meses separavam a primeira aparição “ao vivo”, da última.
Esse profissional não era YouTuber, apresentador e nem mesmo palestrante. Acho que o trabalho dele é ser “liver” (a pessoa que faz lives – profissão que eu inventei). Mesmo em tempos de “transformação digital”, o fato é que poucas pessoas que trabalham precisam estar em telas transmitidas ao vivo.
Trabalho remoto com valor e significado
Gestores públicos, desesperados para gerenciar equipes remotas, aplicando modos de gerenciar que deveriam ficar abandonados em um mundo pré-pandemia. Manuais de como trabalhar remotamente sendo escritos por pessoas que estão batendo ponto no escritório contra a própria vontade.
A migração compulsória do trabalho presencial para o trabalho remoto revelou as debilidades daquilo que entendemos por trabalho. As necessidade humanas fundamentais sofreram pouquíssimas alterações em milhares de anos. Deixar de perceber essas necessidades, só vai criar novas indulgências e tornar o aprendizado ainda mais lento.
O trabalho remoto significa mais autonomia, mais confiança, mais tempo sem interrupções (quem não tem filhos está sendo produtivo como nunca), equipes menores, trabalho mais independente e assíncrono. O trabalho remoto possibilita menos trabalho micro gerenciado, dependente e síncrono.
Nós somos muito viciados em transpor as coisas, fizemos isso com os sites e com a burocracia. Agora, estamos fazendo isso com o trabalho. Nosso desafio é aprender rápido. Estamos apenas percebendo que não há nada mágico no escritório presencial. É apenas um espaço onde o trabalho pode acontecer, mas não onde deve acontecer.
A mágica acontece quando realizamos um trabalho com autonomia, excelência e propósito. Para isso, podemos estar onde quisermos.
Foto de capa por Milivoj Kuhar no Unsplash
Traduzido e adaptado de “Remote work is a platform” de Jason Fried