Marco Legal

Criando Laboratórios de Inovação em Governo: iniciativa formal ou projeto de um setor?

Quando organizações públicas decidem navegar pelas águas da inovação e elegem a estruturação de um Laboratório como o meio para fazê-lo, rapidamente se deparam com uma questão muito comum a qualquer iniciativa do setor: devemos ou não formalizar esta ação?

Entendemos aqui que a formalização acontece quando há a publicação de algum instrumento normativo – lei, regimento interno, portaria, etc. –, que institui a criação e, muitas vezes, apresenta mais detalhes referentes à composição e ao funcionamento dos Laboratórios.

Inicialmente, é importante destacar que parece não haver consenso sobre a necessidade de formalização dos Laboratórios. No entanto, uma pesquisa realizada pelo Ipea em parceria com a Rede InovaGov¹ observou que 80% das iniciativas analisadas são formalizadas, o que aponta a escolha pelo caminho da formalização como uma forte tendência.

Sendo assim, de forma a complementar análises quantitativas e tipológicas em relação à formalização de Laboratórios de Inovação em governo, nos parece interessante buscar identificar e compreender as nuances presentes nos argumentos de justificativa da escolha pela formalização ou não dessas iniciativas.

Esses argumentos – que muitas vezes aparecem nas falas de servidores, gestores e demais atores que vêm atuando no campo da inovação em Governo, e não aparecem sistematizados ou descritos nos artigos que abordam o tema – nos parecem ter a capacidade de tangibilizar aspectos positivos e negativos da formalização dos Laboratórios, contribuindo assim para uma compreensão mais ampla e de um ponto de vista mais humanizado e menos técnico sobre as possibilidades e entraves que o marco legal pode trazer para este tipo de iniciativa.

“Se não está escrito, não podemos fazer!”

É comum ouvir nas conversas entre servidores públicos que lhes é permitido fazer estritamente o que está escrito e normatizado. A inovação muitas vezes é encarada como ilegal² justamente por essa condição – seus efeitos e descobertas não estão escritos ou descritos como caminhos possíveis em lugar algum. Isso significa que a formalização muitas vezes é encarada como pré-requisito para qualquer iniciativa ser validada no setor público. Optar pelo caminho da formalização dos Laboratórios de Inovação responde, assim, a inquietações de grande parte dos servidores, que somente irão se engajar se entenderem que a iniciativa é legal, formal. A publicação de um normativo no Diário Oficial significa reconhecimento.

É o momento em que a maioria dos servidores ‘acredita’ que algo existe. Nesse sentido, o fato de um Laboratório ser formalizado expressa um esforço para ser reconhecido e consequentemente, passar a ser considerado uma ação oficial pela grande parte dos servidores públicos.

Porém, se olharmos por outro prisma, podemos também entender que a opção pela formalização para obter reconhecimento e engajamento significa, de alguma forma, ceder a traços marcantes da cultura que se pretende, justamente, transformar. Alguns laboratórios optam pelo caminho da não-formalização exatamente para mostrar que é possível atuar de maneira menos rígida e formal, obedecendo a uma lógica iterativa de aprendizados e aperfeiçoamentos, possível somente com uma dinâmica de trabalho experimental, em menor escala, típica de um ambiente de laboratório.

“Vamos formalizar pois assim teremos orçamento destinado às ações do Laboratório!”

Outro argumento que pode pesar pela formalização é o fato de o Laboratório ter que existir formalmente para que possam ser destinados recursos ou orçamento específico para as ações de inovação. Se pensarmos na lógica orçamentária, não é um argumento a ser desconsiderado.

Em relato sobre a experiência do Mobilab³, o Laboratório de Inovação em Mobilidade da Prefeitura de São Paulo, nos é apresentado o momento em que houve um debate sobre a necessidade de buscar sua formalização para permitir autonomia financeira e menor dependência política do Laboratório em um cenário de mudança de gestão. A preocupação de gestores e servidores era de que a mudança no cenário político não impactasse nos recursos destinados à iniciativa e sua formalidade seria, assim, uma espécie de garantia dos recursos necessários a suas atividades.

Por outro lado, é importante lembrar que, no setor público, a destinação de recursos pode ter uma vinculação a projetos diretamente, anulando assim a necessidade de formalização do Laboratório. Dessa forma, é possível que ele apenas figure como uma estratégia ou ação de um departamento, tendo seus projetos elencados no escopo desse setor.

“Vamos formalizar pois assim garantimos que a próxima gestão não irá descontinuar o projeto!”

Este talvez seja o argumento mais frequentemente utilizado quando se trata de defender a necessidade de formalização. A ideia presente neste argumento é a de que a existência de um instrumento normativo fortalece a iniciativa diante da realidade de fragmentação e descontinuidade típica da administração pública. Em muitos casos, a formalização do Laboratório foi compreendida como geradora de maior estabilidade às suas atividades e o compromisso das instituições em ampará-los legalmente. Essa formalização aumentaria, assim o patrocínio das autoridades à ação e promoveria o empoderamento das equipes técnicas envolvidas nas atividades de inovação.

Porém, é importante ponderar esse aspecto sob outro ponto de vista. Assim como podemos observar muitas vezes no caso de iniciativas e políticas públicas de áreas mais tradicionais, como educação e saúde, quando há muita formalidade e força institucional em determinado cenário político, pode acontecer um revés no momento de uma alternância de poder em que se pretende ruptura e descontinuidade em relação à gestão anterior. Por este motivo, não é raro ouvir testemunhos de servidores que atuam em Laboratórios de Inovação sobre como pode também ser vantajoso atuar de forma menos rígida e formal, como já mencionado anteriormente, e não ser associado a uma gestão específica, podendo assim, atravessar as águas muitas vezes turbulentas das transições de Governos.

“Vamos formalizar para que possamos estabelecer parcerias com outros atores estratégicos para que a inovação aconteça!”

Este argumento nos parece ser um dos mais relevantes a serem considerados no momento de se definir pela formalização ou não de um Laboratório de Inovação. A própria natureza de um Laboratório de Inovação determina como uma de suas principais características a atuação multidisciplinar e intersetorial. Parcerias com organizações de dentro e de fora do setor público são apontadas como fundamentais para o sucesso de um Laboratório de Inovação. Essas organizações podem ser desde órgãos de controle ou Procuradorias, atuando de forma a orientar os Laboratórios para que suas atividades se mantenham na legalidade e com foco no interesse público, até Universidades e Startups, contribuindo com conhecimento, expertise e tecnologias ainda não disponíveis no ambiente governamental.

Essas parcerias, quando formalizadas, ganham reconhecimento institucional e têm o poder de projetar os Laboratórios no ecossistema de inovação para além das fronteiras da inovação em Governo. O LAB.ges, Laboratório de Inovação na Gestão do Governo capixaba, destacou sua formalização e a celebração formal de parcerias estratégicas como um importante canal para viabilizar a otimização de recursos disponíveis e o compartilhamento de soluções construídas e aprendizados alcançados.
A não formalização pode inviabilizar a formação de parcerias tendo em vista que as assinaturas ainda valem bastante.

“Vamos formalizar para comunicar nossa existência e nossa essência!”

Outro argumento utilizado para justificar a formalização de um Laboratório de Inovação é a de que o instrumento normativo que o institui pode servir como meio de comunicação sobre os objetivos, missão, forma de atuação, dentre outras características dos laboratórios.

Um exemplo interessante é a Portaria que instituiu o InovANAC, Laboratório de Inovação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), que destacou, além dos seus objetivos e formas de atuação, o caráter transitório da iniciativa, comunicando, já no momento de sua criação, que o Laboratório teria um tempo limitado de existência. Interessante remarcar que, diferentemente da preocupação recorrente em relação à continuidade do projeto, neste caso a formalização veio comunicar que o Laboratório funcionaria como um agente de aceleração do processo de criação de uma cultura de inovação na organização, não podendo ter um fim em si mesmo, e, justamente por isso, teria esse caráter temporário e seria extinto quando cumprisse sua missão.

Afinal: formalizar ou não? Eis a questão:

É interessante observar que uma mesma justificativa utilizada para embasar a decisão pelo caminho da formalização pode aparecer como argumento para justificar a decisão pelo caminho oposto. Isso reforça a percepção de que, quando se trata de inovação, mais do que seguir receitas prontas, é preciso compreender muito bem as características e necessidades do contexto de implementação. A observação de outras iniciativas similares, os caminhos escolhidos por outras organizações e consequentes acertos, erros e aprendizados, devem, sem dúvida, servir de norte e inspiração. Porém, o esforço de compreensão dos atores envolvidos, das peculiaridades do contexto e das necessidades e oportunidades que estão em jogo parece ser o elemento mais importante a ser levado em conta no momento da estruturação de um Laboratório de Inovação.

Diante dessas ponderações, nos parece possível concluir que a formalização nunca aparece como elemento capaz de, isoladamente, assegurar condições de operação e efetividade para os laboratórios. Esta decisão precisa estar embasada na análise do contexto político/ administrativo singular do laboratório a ser criado. Quando definida a opção pela formalização, ela deve vir acompanhada de outras estratégias, que devem se conectar à realidade na qual a iniciativa se insere, bem como às dores e necessidades que o Laboratório em questão busca amenizar ou resolver.

Formalizados ou não, é importante reconhecer que o setor público precisa repensar sua cultura e a criação de serviços e políticas públicas de forma inovadora e os laboratórios têm sido grandes aliados nesta transição. Como a sua instituição tem lidado com essa necessidade?


Notas

  1. Capítulo 17 – Perfis e características das equipes e dos laboratórios de inovação no Brasil in Inovação e políticas: superando o mito da ideia / organizador: Pedro Cavalcante. – Brasília : Ipea, 2019.
  2. TAMURA, André. Inovar é confuso, arriscado e ilegal disponível em: https://www.wegov.com.br/inovar-e-ilegal-confuso-e-arriscado/.
  3. Capítulo 16 – Inovando na relação da administração pública com tecnologia: o Mobilab e a contratação de startups pela Prefeitura de São Paulo in Inovação e políticas: superando o mito da ideia / organizador: Pedro Cavalcante. – Brasília : Ipea, 2019.
  4. Capítulo 19 – Laboratório de Inovação na Gestão do Governo do Espírito Santo: resultados e aprendizados.
  5. Capítulo 17 – Perfis e Características das Equipes e dos Laboratórios de Inovação no Brasil.
  6. Capítulo 19 – Laboratório de Inovação na Gestão do Governo do Espírito Santo: resultados e aprendizados.
  7. Portaria nº 3.791, de 14 de novembro de 2017.
  8. Capítulo 18 – Da Iniciativa ao Laboratório de Inovação: a jornada InovANAC.

Referências

ANAC – AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL Portaria N. 3.791, de 14 de novembro de 2017. Institui o Lab InovANAC. Boletim de Pessoal e Serviço, v. 12, n. 46, 17 nov. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 26 de set de 2019.

ASSIS, M.C.; CALIMAN, N.F. Laboratório de Inovação na Gestão do Governo do Espírito Santo: Resultados e Aprendizados. In: Inovação e políticas: superando o mito da ideia. Organizador: Pedro Cavalcante. Brasília: Ipea, 2019. Cap. 19. p.357-374. Disponível aqui.

CAVALCANTE, P.; GOELLNER, I.A.; MAGALHÃES, A.G. Perfis e Características das Equipes e dos Laboratórios de Inovação no Brasil. In: Inovação e políticas: superando o mito da ideia / organizador: Pedro Cavalcante. – Brasília : Ipea, 2019. Cap. 17. p.315-340. Disponível aqui.

FERNANDES, M.N.; NARCIZO, R.M. Da Iniciativa ao Laboratório de Inovação: a jornada InovANAC. In: Inovação e políticas: superando o mito da ideia / organizador: Pedro Cavalcante. – Brasília : Ipea, 2019. Cap. 18. p.341-355. Disponível aqui.

SWIATEK, D. C. Inovando na Relação da Administração Pública com Tecnologia: o MobiLab e a contratação de startups pela prefeitura de São Paulo. In: Inovação e políticas: superando o mito da ideia / organizador: Pedro Cavalcante. – Brasília : Ipea, 2019. Cap. 16. p.295-313. Disponível aqui.

TAMURA, A. Inovar é confuso, arriscado e ilegal. Disponível aqui.