Dia 59

Rede latino americana de mulheres

Para quê uma rede latinoamericana de mulheres na inovação pública?

Por Aura Cifuentes

Nota: este artigo é uma coluna de opinião. Não compromete em nada a posição da instituição onde trabalho.

Nos deviam esse espaço. Nos deviam esta rede. Por muitos anos, trabalhamos em setores semelhantes, em diferentes países da América Latina, sem nos conhecermos e nos reconhecermos, sem podermos ajudar uma a outra, sem ter um espaço seguro para compartilhar os desafios que enfrentamos no ambiente de trabalho.

A história por trás da rede

É cansativo, e às vezes desconfortável, falar em primeira pessoa. Mas, o que motivou a criação dessa rede é o resultado de um acúmulo de experiências da minha vida profissional e pessoal. Eu compartilhei isso várias vezes nas reuniões presenciais que tive com as mulheres da rede, mas, como a idéia é que mais pessoas – homens e mulheres – saibam, aqui vai a história.

Trabalho em setores relacionados à inovação e transformação digital há cinco anos. Nesses cinco anos, trabalhei no setor público, no setor privado e na academia. Cada setor tem sido um universo, com seus pontos fortes e fracos. No entanto, todos têm um denominador comum: são principalmente setores liderados por homens. Não porque os chefes são necessariamente homens. Mas porque o ambiente, os vieses e compartimentos são definidos principalmente pelos padrões masculinos.

Isso é importante na história porque, com o passar do tempo, comecei a perceber que as mulheres não podiam realmente se comportar como mulheres. Trouxemos vieses e esses ambientes os reforçaram. Isso significava que estávamos divididos em dois grupos. Por um lado, houve mulheres que lutaram, implícita e explicitamente, para tornar esses setores mais inclusivos e menos hostis.

Uma luta difícil (muitas vezes feminista) que inclusive custava o trabalho à algumas mulheres. E, por outro lado, houve quem preferisse ficar de fora porque achava que era uma luta que as excluía (ainda mais) e que a elas não compartilhavam nada. Uma posição legítima quando muitas dessas mulheres são mães e essa luta não é uma de suas prioridades.

Eu sempre estive no primeiro grupo. Aos 25 anos, morando no exterior e trabalhando para uma multinacional, tive um chefe maravilhoso que me deu a oportunidade de liderar uma equipe. Foi a primeira vez que enfrentei esse desafio. O que eu não sabia era que também seria a primeira vez que enfrentaria o machismo real. Aquele que busca diminuir e discriminar.

Aquele que questiona as habilidades e conhecimentos pelo simples fato de ser mulher. Aquele que interrompe e fica em silêncio. Aquele que silenciosamente enfraquece as mulheres até serem censuradas e removidas do sistema. Tive o privilégio de ter mentores, de fazer parte de redes e de ter uma formação profissional para que essa situação não escalasse e se convertesse em uma anedota simples. Uma anedota que me deu mais ferramentas e mais compreensão de quão desafiador é ser uma mulher no local de trabalho. E entender, e ver em primeira mão, que existem muitos homens aliados nessa luta.

Desde essa experiência até hoje, tenho me interessado em entender esse fenômeno, mas, sobretudo, trabalhando em meus preconceitos machistas inconscientes. Aqueles que nós trazemos por conta da infância e do país em que crescemos. A partir dessa experiência, decidi que o mundo já era bastante hostil às mulheres, de modo que nós também éramos entre nós. Eu sabia que o que para mim tinha sido uma anedota, para muitas mulheres, é o dia-a-dia e elas não sabem como sair de lá.

O ponto de ruptura

Assim, entre experiências pessoais, leituras e cursos, passaram-se cinco anos em que isso se tornou uma paixão. Hoje, para mim, é impossível ver o mundo sem as lentes de gênero. Muitas conversas com mulheres durante almoços de trabalho ou eventos reforçaram a premissa: o mundo do trabalho é difícil e não estamos nos ajudando. As poucas mulheres que alcançam altos cargos de liderança tornam-se abelhas rainhas, enquanto as que iniciam suas carreiras lutam para não se afogar. Absurdo. Temos que ser solidárias. Temos que apertar as mãos.

Em junho de 2019, depois de participar de um evento digital do governo em Bogotá, onde pude ser painelista, moderadora e discursar, percebi que as mulheres que tinham voz eram muito poucas e sempre as mesmas. Eu estava em três espaços enquanto poderíamos ter sido três mulheres diferentes. Por que?

Quando perguntei aos organizadores do evento, a resposta deles foi branda e sempre repetida por quem não pode aceitar a cegueira: “não encontramos especialistas [mulheres] nesse assunto”. Em vez de aceitar, de maneira honesta, que eles não fizeram a lição de casa e que têm o viés inconsciente de pensar automaticamente em homens especialistas.

[Aqui eu quero e devo fazer um parêntesis. O que eu menos quero é nos vitimizar. Pelo contrário. É por isso que enfatizo a palavra “inconsciente”. Na maioria das vezes isso não é de propósito. Ou seja, não é que eles não queiram que hajam mulheres nem que estejam nos discriminando intencionalmente (às vezes até pode ser, mas eu não quero entrar nisso). Esse é um problema sistêmico: poucas mulheres estudam carreiras técnicas ou tecnológicas; portanto, há menos mulheres do que homens no setor de trabalho nesses setores; as poucas mulheres que chegam às vezes são ainda mais machistas do que os homens e não estão interessadas em ajudar as mulheres que sobem nessa encosta. O que isso gera? Mais homens do que mulheres conversando em espaços públicos, mais chefes homens do que mulheres, homens mais confiantes e mulheres mais inseguras, mais ambientes públicos de inovação com energia masculina. Fim da história.]

Eu saí do evento frustrada. Entrei em um táxi e escrevi um texto pedindo às mulheres, que trabalhavam em inovação pública, que se juntassem a um grupo que acabara de criar no WhatsApp. O objetivo: que essas mulheres preencham um formulário para saber onde moravam, em que trabalhavam, em quais tópicos eram especialistas para que essa base fosse pública e não houvesse desculpa. Então, diante dos insultos, poderíamos dizer: “para os próximos eventos, aqui está este banco de dados. Sim, existem especialistas!
O grupo explodiu. Em menos de 24 horas, alcançamos o limite máximo de membros: 256 mulheres. Impressionante!

Sempre que posso eu conto. Quando abri esse grupo na minha cabeça, pensei apenas: “mulheres, em Bogotá, no máximo na Colômbia”. Mulheres de quase todos os países da América Latina começaram a aplaudir a iniciativa. Elas até entraram por razões que excederam a idéia inicial que me veio à cabeça em tempos de catarse:

“Sou mãe e não trabalho há dois anos. Obrigada por este grupo. Quero voltar ao trabalho e não sei como fazê-lo. Eu me sinto desconectada. Eu quero conhecê-las.”

“Obrigada por este grupo, estou desempregada há alguns meses e sou especialista em Blockchain. Sempre que chego ao último filtro das entrevistas, eles escolhem homens. Eu gostaria de receber conselhos.”
“Oi, Aura. Este grupo é fenomenal. O que você acha se fizermos oficinas de habilidades sociais? Sou especialista nisso e gostaria de disponibilizar meu conhecimento.”

Assim, durante dias, dezenas de mensagens oferecendo ajuda e colocando sobre a mesa muito, muito conhecimento. Tivemos que fechar o grupo e migrar para outra plataforma.

O propósito da rede

Hoje somos mais de 400 mulheres em toda a América Latina. O objetivo da rede é de:

Dar às mulheres maior visibilidade em fóruns, conferências ou eventos. Para isso, foi desenvolvido um banco de dados público gratuito para livre uso e acesso, de modo que, entre as mulheres, apoiamos e defendemos a diminuição de manels [junção de man + panels = painéis em eventos compostos apenas por homens].

Conhecermos e compartilharmos informações de interesse que nos permitam obter níveis mais altos de cooperação e colaboração. Para isso, foram criados grupos nas seguintes redes sociais: Telegram, Facebook e LinkedIn.

Fortalecer habilidades e competências trocando conhecimento dentro da mesma rede. Para fazer isso, em cada cidade, estão sendo realizadas reuniões presenciais para potencializar as diferentes expertises, trajetórias e experiências das integrantes.

Compartilhar os desafios e questionamentos que enfrentamos no local de trabalho (desde saber negociar um salário ou falar em público, até questões mais delicadas de assédio laboral) para que juntas possamos nos ajudar e encontrar uma solução.

Até agora, houveram diferentes reuniões presenciais, em diferentes cidades do mundo.

“Hoje com essas mulheres fortíssimas em questões de inovação pública na América Latina. Falamos sobre inovação com uma abordagem de gênero. Não pode haver inovação sem diversidade e consciência de gênero. #InovaçãoFeminista“.

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“1º Encontro de Mulheres na Inovação Pública. Grupo de mulheres em que trabalhamos no âmbito da inovação e buscamos gerar mudanças e impacto positivo através do que fazemos. “

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“Temos que evitar a síndrome da abelha rainha. Não é porque chegamos aqui que outras não podem chegar.”

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Poema proclamado por Angela Pinzón durante o encontro.
Un mar de fueguitos
Un hombre del pueblo de Negua, en la costa de Colombia, pudo subir al alto cielo. A la vuelta, contó. Dijo que había contemplado, desde allá arriba, la vida humana. Y dijo que somos un mar de fueguitos.

-El mundo es eso — reveló-.

Un montón de gente, un mar de fueguitos. Cada persona brilla con luz propia entre todas las demás. No hay dos fuegos iguales. Hay fuegos grandes y fuegos chicos y fuegos de todos los colores. Hay gente de fuego sereno, que ni se entera del viento, y gente de fuego loco, que llena el aire de chispas. Algunos fuegos, fuegos bobos, no alumbran ni queman; pero otros arden la vida con tantas ganas que no se puede mirarlos sin parpadear, y quien se acerca, se enciende”
— Eduardo Galeano.


Atualmente, existem vários projetos em andamento. Um grupo de mulheres está pilotando uma iniciativa que busca oferecer apoio a mulheres recém-formadas ou em busca de trabalho para ajudá-las a melhor estruturar e projetar seus currículos. Por outro lado, existe uma iniciativa em termos de fortalecimento de habilidades. Um formato de oficina está sendo projetado para que as mulheres que desejam fortalecer isso possam fazê-lo.

Perguntas frequentes

Esta rede é aberta apenas para mulheres que trabalham no setor público?
Não. Muito pelo contrário. O objetivo dessa rede é que mulheres de diferentes setores, que estejam contribuindo para resolver algum problema público, façam parte. Isso significa que a rede busca ter mulheres com diferentes trajetórias, idades, conhecimentos e paixões. Mulheres que trabalham com tecnologias emergentes, mas também com tecnologias não convencionais. Mulheres das grandes cidades, mas também de cidades pequenas e médias.

Fuente: formulario público. Variable “temas de interés”, 212 respuestas. Septiembre de 2019. Visualización hecha por Néstor Andrés Peña.

Esta rede é feminista?

Essa rede promove a sororidade, a igualdade e o empoderamento das mulheres no trabalho e no nível profissional. Embora sua fundadora e várias das integrantes se declarem abertamente feministas, se uma mulher não se chama assim, isso não é motivo para não fazer parte da rede. O feminismo é um caminho que cada mulher toma de maneira diferente e em momentos diferentes. Não existe um feminismo único, portanto não é um requisito obrigatório fazer parte dos grupos da rede. No entanto, qualquer comentário ou ato de violência contra uma mulher será passível de exclusão imediata da rede.

E…A pergunta que vale um milhão: por que a rede não aceita homens?

Vale esclarecer e reiterar que esta rede não promove nenhum tipo de segregação, discriminação ou exclusão por gênero. Nesse sentido, não odiamos ou rejeitamos os homens. As razões pelas quais essa rede é composta apenas por mulheres são: 1) a maioria das mulheres na rede deseja que seja assim, 2) não havia uma rede como essa e sempre há uma primeira vez para criá-la e fazer parte; e 3 ) Muitas das conversas giram em torno de desafios no local de trabalho, onde é essencial ter um espaço de confiança e sororidade. Em breve, o desafio será poder expandi-lo para outros grupos, para outras minorias, para aprimorar a inovação pública com foco em gênero.


Se você é homem e leu este artigo: muito obrigada! Saiba que você é um aliado e pode desempenhar um papel fundamental na promoção dessa rede (e na divulgação do banco de dados público). Se você é mulher, trabalhe nessas questões e não faz parte desta rede: participe! Estamos esperando por você.

Texto original publicado no Medium.