Bem-vindos ao "Dia da Marmota" do setor público, onde o calendário muda, mas os problemas são eternos. Não existe caminho para a inovação...
O setor público, essa grande roda-gigante de inovações, onde cada volta traz o brilho de uma nova tecnologia ou metodologia, nos faz acreditar que estamos subindo. Mas, na verdade, continuamos a girar no mesmo lugar.
A cada ano, ouvimos o mesmo burburinho sobre como as tecnologias de informação e comunicação vão resolver todos os nossos problemas ou como o design thinking vai nos transformar em gênios empáticos e inovadores. Mas, na realidade, assim que a empolgação diminui, nos vemos de volta à estaca zero, enfrentando as mesmas perguntas, dúvidas e desafios de sempre. Bem-vindos ao “Dia da Marmota” do setor público, onde o calendário muda, mas os problemas são eternos.
Imaginem o Sísifo moderno, trocando sua rocha por uma pilha de relatórios sobre inovação e novos sistemas. É isso que se parece tentar inovar no setor público. Todos os dias, os gestores arrastam suas pedras tecnológicas montanha acima, apenas para vê-las rolar de volta ao ponto de partida assim que alguma coisa vai mal, ou quando as eleições chegam. E, como no filme, parece que estamos condenados a repetir o mesmo roteiro, dia após dia, com a esperança ingênua de que, de alguma forma, o resultado será diferente.
Atualmente, é a vez das inteligências artificiais. A “I.A.” é vendida como a panaceia para todos os males burocráticos: vai prever problemas, otimizar processos, e talvez até fazer o café (de licitação?). Mas na prática, o que frequentemente acontece é que ela não consegue distinguir um cidadão de um sofá, dependendo dos dados que recebe. Ela apenas nos lembra que é mais fácil criar e consertar um algoritmo tendencioso do que combater um humano preconceituoso.
…é mais fácil criar e consertar um algoritmo tendencioso do que combater um humano preconceituoso.
E o design thinking, dá até pena. Promete uma revolução na maneira como os serviços são projetados, focando no usuário. Mas quantos laboratórios e sessões de brainstorming, repletas de post-its coloridos e jargões, são necessárias antes de admitirmos que não estamos realmente mudando nada, apenas pintando a mesma parede de uma cor ligeiramente diferente?
Essa é a beleza do sarcasmo no setor público: sabemos que estamos em um loop, presos em um filme que já vimos centenas de vezes, mas cada vez que o relógio toca, fingimos surpresa com o que acontece em seguida. É um ciclo de entusiasmo seguido de desilusão, uma festa que sabemos que terminará com a ressaca da realidade.
Claro, sempre existe aquele idealista, o protagonista do nosso filme, que pensa que vai quebrar o ciclo. Armado com novas ferramentas e uma dose saudável de otimismo, ele sobe a montanha, certo de que desta vez será diferente. Mas, como o verdadeiro Sísifo que é, o sistema o desafia a cada passo, com burocracia, política interna e uma resistência ao risco que seria cômica, se não fosse tão tragicamente previsível.
Então, o que fazemos? Continuamos a participar dessa tragicomédia, aplaudindo cada nova ideia como a revolução que temos esperado, mesmo sabendo, no fundo, que provavelmente estaremos no mesmo lugar amanhã. No setor público, inovar é como tentar ensinar poesia a um peixe: ele pode nadar em círculos com mais entusiasmo, mas no final do dia, ainda é apenas um peixe, e você está falando com a água.
É assim que lidamos com a inovação: um misto de esperança cega e cinismo experiente, um coquetel que só poderia ser servido em um bar, onde cada gole é tanto um brinde à possibilidade quanto um aceno para o inevitável. Saúde, então, ao nosso Sísifo burocrático. Que ele encontre algum conforto na rotina, mesmo que esteja apenas decorando os degraus de sua própria futilidade.
Trabalhar, inovar e sonhar com o cume…
Apesar desse retrato cínico, há um fagulha de esperança que se recusa a ser apagada pela rotina exaustiva de inovar o setor público. O verdadeiro progresso, é árduo e muitas vezes frustrante, e não pretendo apenas aceitar a condenação de Sísifo como um destino imutável. Precisamos abraçar gentilmente o trabalho duro, as conversas difíceis e lidar com os egos e comportamentos das pessoas que muitas vezes impedem que as mudanças se concretizem. Mas como transformar esse ideal em realidade?
Primeiramente, é essencial empoderar os agentes públicos, dando-lhes não apenas as ferramentas, mas também a autonomia para moldar seu trabalho de forma significativa. Quando os servidores se sentem instruídos, confiantes e responsáveis, eles se transformam em agentes ativos de mudança, e não meros espectadores de seus próprios esforços repetitivos.
Em segundo lugar, devemos iluminar e celebrar as boas ideias, práticas exemplares, projetos inovadores e comportamentos éticos que já existem dentro do setor público. Tais lampejos de coragem, genialidade e dedicação precisam ser destacados e expostos, criando uma cultura onde a inovação não é apenas possível, mas incentivada, priorizada e valorizada.
Por fim, é crucial aproximar os diálogos entre diferentes esferas e poderes de governo. A colaboração pode desfazer muitos nós burocráticos que retardam transformações, e através de uma comunicação efetiva simples e uma vontade genuína de entender e resolver os desafios em conjunto, podemos começar a desvendar os problemas complexos que enfrentamos.
Não existe caminho para a inovação, a inovação é o caminho
Estou há quase 15 anos nessa jornada… O caminho não é fácil e está longe de ser rápido, mas nos oferece a única possibilidade real de romper o ciclo vicioso de desilusão e começar a construir um ciclo virtuoso de melhoria e inovação genuína. É uma jornada que exige paciência, resiliência e, acima de tudo, uma crença persistente de que, apesar dos obstáculos, podemos e vamos fazer melhor. Então, enquanto continuamos a empurrar nossas pedras montanha acima, que façamos isso com a visão de que cada empurrão, por menor que seja, nos aproxima um pouco mais do cume sonhado.