Relato de um servidor público
Há meses, eu me sento todo dia em uma cadeira quebrada, cujo assento pende pra frente!
Não é nada, não é nada, pode detonar minha coluna!
Mas se eu reclamar, a culpa ainda pode ser minha porque “nunca reclamei antes”, mas posso ficar tranquilo, porque mês que vem vão resolver. Só que mês que vem é futuro, dos mais incertos, inclusive. E futuro nunca chega, já ensinou a filosofia. “Fiado, só amanhã”, saca?
Mas amanhã eu vou trabalhar mesmo assim…
Há meses, tenho feito incontáveis horas-extras, ainda que elas não contem, mesmo que incluam noites, sábados e domingos. Sim, eu ainda sou servidor público! Sim, há servidores públicos que não se encaixam nesse modelinho estereotipado e reducionista que você tem como verdade absoluta, e arrota aos quatro ventos com desprezo; enquanto sonha em “passar num concurso bom pra ter estabilidade, não trabalhar e ganhar bem. Mas não teve “sorte” ainda… Vai lá ver o que diz a filosofia sobre sorte!
Como contar com a sorte não é uma opção; amanhã, eu vou trabalhar, mesmo sabendo que a cadeira quebrada me espera…
“Há meses, quem devia ajudar, atrapalha; quem devia colaborar, dificulta; quem devia fornecer, boicota; quem devia sustentar, desacredita; quem devia fazer, espera acontecer… “
Cabe mais filosofia barata? Claro que cabe! E nem é tão barata assim, essa é pros fortes de coração, já dizia o tio bigodudo: “a esperança é o derradeiro mal; é o pior dos males, porquanto prolonga o tormento”. E que tormento esse de uma gestão pública arrastada, pouco efetiva, burrocrática (com dois erres mesmo), toda apegada na síndrome de Gabriela (menos a Gabi da WeGov), morrendo de medo do menor aceno para mudanças.
Cadeiras quebradas, mudanças necessárias
Sem esperança, nem sorte, o jeito é ir trabalhar, amanhã! Sim, eu sei, minha cadeira tá quebrada! Carece ter dó, não! É que além da cadeira quebrada, tem um bocado de gente boa lá! Gente de verdade! Que trabalha, rala, sofre, xinga, faz hora extra, ri, excomunga, tropeça, cai, levanta, trabalha pra caralho, faz milagre, produz, negocia, convence, corrige, faz de novo, comemora, se descabela, faz piada, manda à merda, surta, entra em êxtase, trabalha, deprime, fica puto, cobra, entrega, corre atrás, releva, começa de novo, come, bebe, gargalha, trabalha pra caralho.
E dá muito certo, porque é muita gente boa junto, saca!?
E muita gente boa junto, trabalha e dá trabalho!
Se entrega muito, e entrega muito!
Promove a mudança na qual acredita, ao invés de… só chamar o caminhão da gato azul, pra depois, quando atrasar tudo, botar a culpa no motorista que esqueceu de preencher o formulário verde, em 6 vias, e esqueceu de pegar assinatura do chefe do pátio 7 dias antes, para liberar a saída do caminhão 15 minutos mais cedo…
É que sem aquela assinatura, capaz que a chave nem entre na ignição, e a lei não fala que pode tentar colocar a chave na ignição mesmo sem a assinatura, então melhor não tentar; melhor consultar a concessionária dos caminhões pesados antes, porque os semideuses precisam dizer o que fazer nesse caso; mas os semideuses têm muito trabalho acumulado pra justificar o alto salário, então demora uns seis meses pra responder; mas aí quando a resposta vier, já vai ser época da chuva, e é melhor não fazer mudança na chuva, porque se danificar algum equipamento o Estado vai ter que ressarcir, e pode vir um questionamento porque não mudou durante a seca, então é melhor não mudar mesmo! Faz uma minuta de memorando justificando a não mudança, por favor!? Três vias, tá!?
Vidas que seguem
A gente é do tipo que tenta logo uma ligação direta; e quando o motor não pega, a gente tenta empurrar… ainda que a mudança seja pesada, ainda que o inquilino seja resistente…
E a gente faz isso porque tem propósito!
E é por causa dessa gente, com propósito, que eu vou trabalhar amanhã, e depois, e depois…
É por causa desse propósito que a gente sabe o tamanho da mudança que tem produzido, formigueiramente!
E ninguém, ninguém, pode nos tirar o doce sabor de nossas pequenas grandes vitórias!
É que formiga adora um doce!
Há meses, só a gente sabe quanto doce há, entre os tantos amargores de tantas cadeiras quebradas! E como sempre cabe mais um cadinho de filosofia:
“Aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.”
E música é quase sempre doce… mas eu divago!